As comemorações em torno do aniversário da arqueóloga Niède Guidon, que completou 90 anos em março de 2023, levaram a equipe do Centro de Memória e Informação do Museu da Imagem e do Som (CEMIS) a revisar os itens de uma de suas primeiras coleções museológicas, a coleção Arte Rupestre – Niède Guidon.
Os 5.776 itens fotográficos que formam a coleção, divididos em cromos, ampliações e negativos, produzidos nos anos de 1970, 1973 e 1975, são registros realizados nos sítios arqueológicos descobertos por Niède Guidon na região de São Raimundo Nonato, no estado do Piauí.
A coleção recebeu esse nome porque a maior parte desses registros fotográficos são de arte rupestre, termo que se refere às pinturas e gravuras realizadas em superfícies rochosas por grupos humanos que viviam no período que conhecemos como Pré-História. Enquanto as pinturas eram elaboradas com a aplicação de pigmentos, as gravuras eram produzidas com a gravação de desenhos que ganhavam forma a partir da realização de fissuras feitas nas rochas.
Além dos registros de arte rupestre, a coleção também é formada por registros de estudos que Niède e sua equipe realizaram sobre as representações encontradas nas superfícies das rochas, registros das paisagens da região onde os sítios arqueológicos foram encontrados, registros de sepulturas pré-históricas e registros de gravuras rupestres atuais, produzidas por indígenas da tribo Krahó.
As primeiras missões arqueológicas de Niède Guidon à região da Serra da Capivara resultaram em sua pesquisa de doutorado intitulada Peintures rupestres de Várzea Grande, Piauí, Brésil, que foi publicada no ano de 1975 pelo Caderno d’Archéologie d’Amérique du Sud, com o apoio da Commission des Recherches Archéologiques à l’Etranger du Ministere des Affaires Etrangeres e a l’Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales.
A pesquisa resultou na elaboração de um inventário visual das pinturas rupestres, com uma metodologia sistemática que passou a servir de parâmetro para a análise dos registros rupestres da região e foi a base para o desenvolvimento de diversas pesquisas arqueológicas que foram realizadas nas últimas décadas.
As pesquisas mais relevantes para o legado de Niède foram realizadas no sítio arqueológico Toca do Boqueirão da Pedra Furada, onde diversas escavações e análises laboratoriais de artefatos, ocorridas entre o ano de 1978 e o início dos anos 2000, levaram a arqueóloga a defender a teoria de que os primeiros grupos de Homo Sapiens teriam começado a ocupar o continente americano há 100.000 anos atrás, contrariando a teoria arqueológica tradicional que situa a chegada do homem as Américas há cerca de 13.000 anos via estreito de Bering.
Para garantir a preservação da região onde foram descobertos esses sítios arqueológicos, foi criado oficialmente, em 1979, o Parque Nacional Serra da Capivara, considerado patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO e, em 1986, Guidon criou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade civil sem fins lucrativos, com o objetivo de administrar e preservar o parque e viabilizar a realização de atividades científicas, culturais e sociais no local.
Sendo assim, em meio às comemorações dos 90 anos de Niède Guidon e motivados pela importância científica dessa coleção, formada por alguns dos primeiros registros fotográficos desses achados arqueológicos que, segundo Niède, podem ser o produto das manifestações mais antigas da presença humana em todo o continente americano, a equipe do CEMIS iniciou uma investigação com o objetivo de entender em que contexto essa coleção foi incorporada ao acervo do Museu, se o MIS chegou a contribuir de alguma maneira para a produção dessas fotografias e, principalmente, se essa instituição é a única a possuir esses registros.
Inicialmente, a equipe realizou o levantamento e pesquisa sobre os materiais presentes na própria instituição, começando pela análise dos instrumentos de pesquisa do acervo e pela documentação administrativa daquele período, com o objetivo de coletar informações sobre o processo de incorporação da coleção e entender melhor o contexto de produção, a organização e o conteúdo imagético dessas fotografias.
Os dois instrumentos de pesquisa analisados apresentam informações quantitativas sobre a coleção. O Guia de Acervo – Museu da Imagem e do Som menciona que os cromos da coleção teriam sido produzidos pelo MIS e as ampliações teriam sido “adquiridas” de Niède Guidon. O Acervo Online, instrumento de pesquisa em forma de base de dados, permitiu a identificação do conteúdo imagético e da forma de organização, com pequenas séries de registros fotográficos agrupados de acordo com o sítio arqueológico em que foram produzidos. A quantidade de cromos registrada no Acervo Online é o dobro da quantidade de cromos apresentada no Guia de Acervo – Museu da Imagem e do Som.
Os outros materiais institucionais consultados foram as fichas de registro de material audiovisual, documentos onde eram manualmente cadastradas as informações sobre os itens do acervo museológico, um vídeo, pertencente ao acervo museológico do MIS, com uma entrevista em que Rudá de Andrade, primeiro diretor do Museu, fala sobre a formação das primeiras coleções da instituição, e uma publicação do Diário Oficial do Estado de São Paulo que menciona o MIS relacionado a uma contratação de Niède Guidon.
A partir da análise das fichas, foi possível extrair algumas informações administrativas sobre a coleção, como, por exemplo, o número do processo de incorporação, que é o número fornecido pela Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM) da Secretaria de Cultura para identificar o conteúdo recebido e os números de P.I., que são os números de patrimônio fornecidos pelo Centro de Almoxarifado e Patrimônio do Departamento de Administração da Secretaria da Cultura, atestando que o item foi incorporado ao patrimônio do Governo do Estado de São Paulo. Nessa coleção, as ampliações receberam um número de P.I. e os cromos receberam outro.
No vídeo com a entrevista de Rudá de Andrade, que foi diretor do Museu entre os anos de 1970 e 1981, o antigo diretor declara que o MIS providenciou o material para o registro da pesquisa de Guidon, ficando com o material para o MIS e fornecendo uma cópia para que a arqueóloga utilizasse em sua pesquisa de doutorado.
Por fim, uma nota do Diário Oficial do Estado de São Paulo, publicada no dia 16 de outubro de 1975, relata que a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia contratou Niède Guidon, pelo valor de Cr$50.000,00 cruzeiros, para “trabalhos de pesquisas arqueológicas destinadas ao Museu da Imagem e do Som.”
Após o levantamento dos materiais institucionais e análise dos dados obtidos, a equipe entrou em uma segunda fase de sua investigação, que consistiu no estabelecimento de contato com instituições citadas por Niède Guidon em suas pesquisas como parceiras atuantes nas primeiras missões da arqueóloga na região de São Raimundo Nonato e que poderiam contribuir com informações ou materiais que ajudassem a contextualizar a produção dos itens que formaram a coleção do MIS.
Primeiramente, a equipe entrou em contato com a UPPM solicitando acesso aos documentos que tratam da contratação de Guidon e dos detalhes da incorporação do material produzido durante essa expedição arqueológica realizada na década de 1970. A equipe técnica da UPPM, retornou a nossa solicitação e disse que não encontrou o processo de incorporação dessa coleção na Secretaria.
Paralelamente a UPPM, foi estabelecido um contato com a equipe da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). Por meio de troca de e-mails, membros da equipe técnica da FUMDHAM, que trabalham com Niède, afirmaram acreditar que as fotografias que estão no acervo do MIS são registros realizados durante as primeiras missões arqueológicas de Guidon. Porém, a própria arqueóloga não se recorda de qualquer participação do Museu da Imagem e do Som em sua pesquisa.
Ainda assim, ao terem acesso às imagens da coleção do MIS, a equipe da FUMDHAM se disponibilizou a realizar um trabalho de identificação mais precisa dos sítios arqueológicos aos quais às imagens se referiam, relacionaram os sítios escavados e os sítios preparados à visitação e, além disso, utilizaram o Google Maps para desenhar o trajeto que a equipe de pesquisa teria percorrido na década de 1970.
A partir dos resultados desse trabalho espontâneo, gentilmente executado pela equipe da FUMDHAM, a equipe do CEMIS constatou que algumas imagens da coleção estavam corretamente identificadas no Acervo Online, com a localização do sítio arqueológico correspondente ao título do registro do item cadastrado. Outras imagens, porém, são registros fotográficos de sítios que não correspondem ao título cadastrado.
Orientada pela UPPM, a equipe do CEMIS também entrou em contato com o Arquivo do Estado de São Paulo em busca de alguma informação sobre a aquisição da coleção de Arte Rupestre. No momento do contato, a equipe respondeu que não havia localizado qualquer arquivo sobre o tema solicitado ou sobre a arqueóloga Niède Guidon, sendo necessária uma visita presencial para consultar o Fundo Secretaria de Cultura, que estava passando por um tratamento de conservação no Centro de Conservação Permanente do Arquivo do Estado.
Com base nas citações de Niède sobre a parceria realizada com a equipe do Museu Paulista e a fim de buscar informações sobre o processo de produção das fotografias que formam a coleção Arte Rupestre, a equipe do CEMIS visitou o Serviço de Documentação Histórica e Iconográfica do Museu Paulista, onde foram consultadas oito pastas contendo documentação textual institucional, mas não foram localizadas referências concretas.
Como o acervo de arqueologia do Museu Paulista foi transferido para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE-USP) em 1989, a equipe consultou a Seção Técnica de Documentação e Informação desse Museu para tentar localizar documentos ou informações sobre a produção das imagens, porém a consulta ao MAE-USP também não foi bem-sucedida.
Ainda na tentativa de compreender a origem da coleção de fotografias do MIS, e seu contexto de produção, a equipe visitou a exposição Pedra Viva Serra da Capivara: o legado de Niède Guidon, realizada este ano no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MUBE). Nessa visita, a equipe descobriu que um dos membros da equipe de curadoria da exposição recebeu orientação de mestrado de Niède, podendo ser um contato a mais entre a equipe do CEMIS e a arqueóloga. Porém, até o presente momento, não houve resposta ao contato realizado com essa pessoa por e-mail.
Diante de tudo o que foi exposto até então, é possível concluir que as informações levantadas pela equipe do CEMIS ainda não foram suficientes para conseguir sanar todas as dúvidas existentes em relação à contextualização da coleção Arte Rupestre – Niède Guidon no MIS.
A partir de uma análise detalhada da coleção e do material institucional que a ela se refere, foi possível à equipe compreender melhor o conteúdo imagético dos itens e entender que a coleção está organizada em pequenos conjuntos, de acordo com os sítios arqueológicos que foram investigados e mapeados nas primeiras missões arqueológicas realizadas pela equipe de Niède Guidon.
Porém, com as informações levantadas até agora ainda não é possível determinar o contexto de produção dessas fotografias e nem como os itens dessa coleção foram incorporados ao acervo do MIS. Mas, com base nos dados obtidos do material institucional, é possível começar a levantar algumas hipóteses.
A primeira hipótese, com base nas informações extraídas do Guia de Acervo – Museu da Imagem e do Som, é a de que o MIS, de fato, produziu os cromos, e os fez em duplicata, com a intenção de disponibilizar as cópias para Niède para uso em sua pesquisa do doutorado, conforme relatado na entrevista de Rudá de Andrade.
Porém, por alguma razão ainda desconhecida, essas cópias nunca chegaram a sair do MIS, acabando por integrar a coleção, uma vez que a equipe da FUMDHAM alega que Niède não se recorda de uma parceria com esse Museu em suas pesquisas para o doutorado.
A segunda hipótese, com base da publicação do Diário Oficial do Estado de São Paulo, e com base nas informações do Guia, se refere à aquisição do conjunto de ampliações que apresentam imagens dos estudos das pinturas e gravuras rupestre presentes nos sítios arqueológicos pesquisados por Niède.
Como a descrição desse conjunto de ampliações está compatível com a descrição da natureza da contratação relatada na publicação do Diário Oficial, é provável que esse conjunto de ampliações tenha sido adquirido de Niède Guidon, por compra, para integrar o acervo do MIS complementando a coleção de Arte Rupestre que já contava com os cromos.
Com base nessas hipóteses, é possível deduzir que uma parte dos registros fotográficos da coleção Arte Rupestre – Niède Guidon, formada pelos cromos, é uma exclusividade do Museu da Imagem e do Som. Embora a própria arqueóloga, assim como a FUMDHAM, possua uma série de imagens semelhantes produzias no mesmo período e que foram utilizadas tanto na pesquisa de doutorado de Niède como nas pesquisas dos anos posteriores.
Em relação ao contexto de produção dos cromos, a equipe do CEMIS seguirá com seu trabalho de investigação a partir da pesquisa junto aos documentos do Fundo Secretaria de Cultura que, está em tratamento de conservação no Arquivo do Estado de São Paulo, para entender o que motivou o MIS a produzir esse fascinante material que formou uma de suas primeiras coleções museológicas.
Referências
DOCUMENTAÇÃO, Setor de. Guia de Acervo – Museu da Imagem e do Som / Guia de História Oral – Museu da Imagem e do Som. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 2000.
ANDRADE, Rudá de. Rudá de Andrade: depoimento [1993]. Entrevistadores: Ana Maria Guariglia, Daisy Perelmutter. São Paulo: MIS-SP, 1993. DVD. Entrevista concedida para a Coleção sobre o Museu da Imagem e do Som.
GUIDON, Niède. Arqueologia da região do Parque Nacional Serra da Capivara. In: CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Antes: histórias da pré-história. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2005. p. 132-141.
GUIDON, Niède. Peintures Rupestres de Varzea Grande Piaui, Brésil. 1975. 174 f. Tese (Doutorado) – Curso de Pré-História, Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, Paris, 1975.
GUIDON, Niède & Delibrias, G. Carbon – 14 point to man in tne Americas 32,000 yers ago. Nature 321 (6.072): 769-771, 1986.
AMERICANO, Fundação Museu do Homem. FUMDHAM. Disponível em: http://fumdham.org.br/. Acesso em: 10 maio 2023.
PAULO, Universidade de São. Museu Paulista Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.mp.usp.br/. Acesso em: 01 jun. 2023.
PAULO, Universidade de São. Museu de Arqueologia e Etnologia. Disponível em: https://mae.usp.br/. Acesso em: 03 jul. 2023.